Uma rápida visão sobre recuo da arma

Terceira Lei Newton: para cada ação (força) existe uma reação (força) igual e no sentido contrário. Qual a relação desta Lei com o recuo da arma?

Luiz Eduardo Dias*

Entender um pouco mais sobre o recuo da arma pode ajudar a minimizar seus efeitos. Mesmo para aquele atirador “raiz” que gosta de sentir o recuo da arma após o disparo, chega um momento, após 100 ou 200 tiros seguidos, que o incômodo pode aparecer. Este incômodo pode resultar em dor, fadiga, perda de foco e, em situações mais graves, pânico de gatilho e até luxações. Aliás, não se trata somente do incômodo físico. Se considerarmos as disciplinas onde se realiza um segundo tiro, o recuo resultante do primeiro disparo pode afetar significativamente a precisão do próximo. 

Um ponto importante, que inicialmente deve ser considerado, refere-se à postura de tiro. Se o atleta não se posiciona corretamente, de maneira que os pés possibilitem boa sustentação para o corpo, e a arma  seja adequadamente colocada na região do ombro, possivelmente nenhum equipamento ou artifício reduzirá significativamente os efeitos de recuo da arma. 

Para o iniciante no tiro esportivo o auxílio de um instrutor em uma clínica de tiro é fundamental para aprender a posição correta de tiro e evitar problemas futuros. Veja a matéria sobre clínica de tiro publicada na Revista Pedana por meio do link a baixo:

https://revistapedana.com/a-importancia-da-clinicas-de-tiro-esportivo/

A explosão de um cartucho contendo de 24 a 32 g de chumbo gera uma energia (força de reação) no sentido contrário da trajetória dos chumbos (Tabela 1). A energia gerada vai se reduzindo à medida que os materiais componentes da espingarda absorvem parte dela. Entretanto, a fração que sobra vai se manifestar na forma de uma pressão(vibração) na região do ombro e da bochecha do atleta. De acordo com os dados da Tabela 1, para uma mesma massa de chumbos existente em um cartucho, ao se reduzir a velocidade dos chumbos, a força de reação será menor, ou seja, o recuo da arma será menor.

Para alterar a velocidade dos chumbos altera-se a quantidade ou as características do propelente. Isto pode ser verificado claramente ao se comparar o cartucho CBC 32 g para hélice (que possui as mesmas características do CBC T200) com o cartucho CBC T200 light. A redução de 7,5% na velocidade da chumbada (de 400 para 370 m/s) resulta em menor força de reação, da ordem de 15% (de 31,60 para 27,13 N).

Possivelmente o primeiro acessório criado para reduzir a pressão nos ombros foi a soleira. Diversos materiais (couro, baquelite, borracha, plástico, espuma etc ) foram e são utilizados para sua confecção. Um material de baixa densidade não terá capacidade para reter parte da energia e acaba por transferi-la aos ombros do atirador. Assim, uma soleira de material denso irá absorver parte da energia e de forma mais lenta e gradual irá transferi-la para a espingarda, evitando uma vibração mais intensa, ou seja, menor o. recuo da arma.

Sorbothane® é um material sintético, relativamente novo, que vem sendo utilizado para diferentes finalidades, incluindo soleiras. A empresa Kick-Eez comercializa soleiras confeccionadas com este material (https://kickeezproducts.com/collections/grind-to-fit). De acordo com o fabricante ela pode reduzir até 70% das vibrações causadas pelo recuo da arma.

Existem soleiras que podem ser colocadas sobre a soleira original, como uma meia que veste um pé (veja no site https://limbsaver.com/pages/recoil-pads-showcase). Elas realmente podem reduzir o recuo, no entanto, aumentam a espessura da arma naquela região e pode provocar a necessidade de ajustes adicionais na coronha. Como alternativa, a mesma empresa produz soleiras que substituem a original da arma. De acordo com o fabricante, o sistema desenvolvido (Airtech Recoil) é capaz de reduzir de maneira eficiente boa parte do recuo. Outras fabricantes – inclusive nacionais – podem ser facilmente encontrados em uma busca na internet. Existem soleiras reguláveis que permitem melhor ajuste da arma ao corpo do atleta. A fabricante de armas Boito comercializa uma soleira ajustável em seu site (https://www.armasboito.com.br/br/produtos/43/soleira-regulvel).  

A tecnologia tem trabalhado para  minimizar o recuo da arma. Alguns fabricantes desenvolveram sistemas com amortecedores, internos na coronha ou na soleira, que reduzem parte do efeito de recuo (Figura 1). Os amortecedores internos podem ser hidráulicos, como o caso do Kick-Off Systemutilizado na semiautomática Beretta série A400. De acordo com a fabricante este sistema pode reduzir até 50% do recuo da arma.

Além de o posicionamento correto do corpo, o encaixe perfeito da arma pode minimizar a pressão decorrente do recuo da arma. A maioria dos fabricantes de espingardas fornecem a opção de coronhas reguláveis. O ajuste da coronha é importante para que o atleta tenha um alinhamento de 100% de seu olho dominante com o cano da arma e o alvo. Para conseguir isto, a íris ou o globo ocular do atirador deve estar centrado horizontalmente com a varilha e verticalmente logo acima desta. Além é claro, do ajuste da distância do gatilho em função do comprimento do braço do atirador, ou seja, a medida entre a ponta do gatilho e o ponto médio da face externa da soleira. Estes ajustes são fundamentais para o conforto e exatidão dos disparos. Tudo bem! Mas como estes sistemas podem reduzir o recuo? Na medida em que permitem alterar facilmente os ajustes de coronha (castpitch, distância de gatilho e altura de comb), pelo menos a sensação de desconforto com o recuo da arma diminui. 

Tabela 1. Energia e velocidade dos chumbos na boca de cartuchos com diferentes características e força de reação decorrente do disparo 

Cartucho Energia na boca Velocidade Força de reação
J m/s N
CBC voo hélice (32g-7 ½) 2.560 400 31,60
CBC T200 light (32g-7½) 2.190 370 27,13
CBC T200 light (32g-8) 2.190 370 27,13
CBC C25  (28g-7 ½) 2.296 405 24,62
CBC F150 light (24g-7 ½) 1.872 395 17,47
CBC F150 (24g-7 ½) 1.968 405 18,35
CBC D150 (24g-7) 2.167 415 19,24

Fonte: adaptado de CBC, www.armasmunicoes.com.br. Força de reação calculada a partir da fórmula apresentada por Arakelian (2016), admitindo-se uma arma de 3,55 kg com um cano de 0,76 m, quantidade de pólvora CBC 219 igual a 1,6 g (para 24 g de chumbos), CBC 216 igual 1,32 g (para 28 g de chumbos) e CBC 219 igual a 1,8 g (para 32 g de chumbos) e velocidade da pólvora obtida a partir da constante de expansão de gases gerados pela queima de pólvora igual a 143,56 m/s (4.700 pés/s). 

Mais recentemente, a ideia de um sistema construído com ligas metálicas e que possa ser acoplado a coronha e seja totalmente ajustável foi desenvolvida pela empresa TSK (Figura 2). Estes sistemas, por permitem um ajuste mais preciso com a anatomia do atleta, podem, de maneira mais ágil e eficiente, modificar a regulagem para que a arma se encaixe adequadamente e o atleta tenha uma boa visada. Entretanto, estes sistemas, quer seja por aspectos relacionados à estética, preço ou à funcionalidade, não são unanimidade entre os atiradores que costumam frequentar os pódios de campeonatos. 

Alternativa mais barata, porém, com menos flexibilidade em termos velocidade e capacidade de ajuste, são as coronhas confeccionadas artesanalmente a partir das medidas corporais do atleta. A partir destas medidas, o armeiro (artesão) inicia o recorte de um bloco de madeira até que se transforme em uma coronha com medidas muito próximas da ideal para o atirador (Figura 3). Em uma segunda etapa de refinamento, são realizados os ajustes finos, na presença do atirador, até que o encaixe fique anatomicamente perfeito e a visada impecável. Este resultado só é possível porque, durante o ajuste fino, o grip e o “pescoço” da coronha foram finalizados perfeitamente para as medidas da mão do atirador, assim como a altura de combe distância do gatilho em relação à soleira.

Outro aspecto importante é o balanceamento da arma. Em função da densidade da madeira utilizada e do tamanho da coronha pode existir um desbalanceamento em relação ao peso do restante da arma. Este desbalanceamento interfere não só na movimentação da arma, como na efetividade do disparo. Neste caso, o armeiro pode realizar pequenos furos na coronha a fim de se colocar pesos de chumbo que resultem em melhor equilíbrio para a arma. Consequentemente, isto também promoverá redução no recuo da arma.Esta alternativa pode tornar o tiro muito mais prazeroso e vitorioso. Felizmente no Brasil temos excelentes armeiros que fazem ótimas coronhas. No entanto, antes de escolher o armeiro que irá confeccionar a coronha, é importante obter informações a respeito de sua experiência, da qualidade de seus serviços, capacidade de cumprir prazos e atendimento durante e após o serviço.

Figura 1. Sistemas de mitigação do recuo da arma por meio de amortecedores colocados internamente na coronha (A)

… ou na soleira (B). Fontes: (A) www.berettausa.com; (B) www.recoilsystems.com/isis-ii.php

Figura 2. Coronha com o sistema TSK para proporcional mais rapidez e precisão nos ajustes de coronha em função das características corporais doa tirador. Fonte: https://www.tsk-italy.com/en/products/stocks

Historicamente fabricantes procuram reduzir o recuo da arma resultante dos disparos alterando características da arma. A alteração mais comum é aumentar o peso da arma. Esta alternativa tem limite, uma vez que o aumento do peso pode resultar em menor rapidez de resposta e mobilidade, além de a maior probabilidade de fadiga por parte do atirador. De acordo com o site https://www.shootingillustrated.com/articles/2020/8/11/how-to-reduce-recoil-with-shotgun, uma arma pesando 3,9 kg disparando uma carga nominal de 42,5 gramas a 1.200 fps gera um recuo de 31 ft/lbs, enquanto uma arma pesando 3,4 kg disparando o mesmo projétil gera 35 ft/lbs de recuo. Ou seja, a redução de 500 g no peso de uma arma, provocaria o aumento de cerca de 11% na intensidade de recuo. Utilizando a mesma fórmula que gerou os dados de força de reação para a Tabela 1, a redução de 500 g no peso de uma espingarda com um cano de 0,76 m e usando o cartucho CBC F-150 (24 g de chumbo 7 ½) a força de reação aumenta de 18,35 N para 21,35 N, ou seja, um aumento de cerca de 14%.

Figura 3. Um bom armeiro pode transformar um bloco de madeira em uma bela e coronha com características únicas que trazem conforto ao atleta e maior precisão no tiro ao voo. Fotos: Clay Shooting Magazine.

Outra alternativa adotada por fabricantes é colocar saídas de gases no terço final dos canos das armas. No caso da Beretta, um exemplo  mais antigo desta alternativa pode ser observado no modelo 682X (Figura 4).

Hoje em dia, a distribuição do peso (equilíbrio) vem sendo mais considerada que o peso total em si. Existem armas que permitem a colocação de pesos na coronha ou que possuem um sistema de agregar peso aos canos (B-fast Balancing Systemda Beretta 694, por exemplo).

Figura 4. Perfurações nos canos, para permitir a saída rápida de gases, podem reduzir o efeito de recuo das armas. Beretta 682X. Foto: Luiz E. Dias.

O cano de uma espingarda possui naturalmente um cone interno, chamado de cone de forçamento (forcing cone). Este cone provoca a redução da bitola interna do cano, a partir da câmara, para um valor que resulte em maior concentração de chumbos, sem prejuízo à integridade do cano. O alongamento deste cone, além de prover maior precisão ao tiro, também reduz o recuo da arma. Ainda na visão de como a tecnologia pode ajudar os fabricantes a diminuírem o recuo, a tendência de aumentar a extensão do cone à medida que recursos tecnológicos são incorporados à fabricação pode ser observada ao se comparar os modelos 682 ( 101 mm), 694 (320 mm) e DT11 (480 mm) da Beretta.  

Se realmente o recuo da arma continuar a incomodar, mesmo com as diferentes maneiras de minimizá-lo, resta a alternativa de atirar com cartuchos com menor quantidade de chumbos e propelentes que produzam menor recuo. Por exemplo, para uma mesma arma peso e comprimento de cano constante a opção de trocar os cartuchos CBC T200 light (32 g 7 ½) pelo o CBC C25 (28 g 7 ½) promoverá, em tese,  a redução de cerca de 9,0% na força de reação (Tabela 1). Esta opção para disciplinas que permitem cartuchos com até 32 g é uma opção interessante. Entretanto, para Percurso de Caça  e Compak (28 g) e disciplinas olímpicas (24 g) as opções são mais restritas, ou mesmo inexistentes.  Qualquer alteração nos componentes de cartuchos a fim de minimizar o recuo certamente refletem na performance final, quer seja capacidade de penetração dos chumbos – leia-se menor capacidade de quebrar o alvo – ou na velocidade dos chumbos, que interfere no padrão de distância de tiro adotado pelo atleta e no lead atribuído aos alvos com trajetórias laterais à posição do atirador.

Finalmente, é fato que a forma com que cada indivíduo sente a pressão no ombro, decorrente do recuo, pode ser distinta. Se o uso de assessórios e equipamentos não atendem a necessidade do atirador, a opção é procurar outra arma que possa trazer maior conforto. Neste caso, as armas semiautomáticas, apesar de normalmente serem mais leves que as de cano sobrepostos, tendem a apresentar menor força de reação, ou seja, menor recuo.

* Este artigo foi escrito com a colaboração do atleta e membro do Comitê Editorial da Revista Pedana, Eduardo Martins de Melo Jr.

Bibliografia

Arakelian, M.B. Bancada de testes de armas de fogo por acionamento remoto. Universidade de Brasília. Projeto de Graduação em Engenharia Mecânica. 2016 65p.

Currie, D. Mastering Sporting clays. Stackpole Books, Guilford, Connecticut – USA, 221p. 2018.

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