Leonardo Manoel Fortes Tunes – OAB/MG 65.375. Francesco Reale Serra, – OAB/MG 104.961
A prática do esporte é um mecanismo que promove a saúde e o bem estar dos interessados, sendo recomendado inclusive por médicos e terapeutas das mais variadas áreas da saúde.
Não à toa que a Constituição Federal de 1988, em seu art. 217, estabelece o direito às práticas desportivas para qualquer pessoa, sendo obrigação do estado e da sociedade exercer e promover o acesso a este direito.
Diante da infinitude de modalidades e tipos de esportes que podem ser praticados é possível conceber que cada pessoa escolha o esporte que mais lhe traga benefícios, de acordo com sua vontade e condição pessoal, devendo observar as regras de segurança e do melhor exercício da modalidade escolhida, assim como as regras do jogo.
Há esportes de alto rendimento, os de recreação e, independente disso, todos precipuamente promovem o bem-estar e melhoria da qualidade de vida do esportista, cabendo a ele escolher o melhor caminho para trilhar nesta busca por competitividade ou por lazer, e promoção da saúde.
No Brasil poderíamos diferir a existência de esportes populares, praticados por um enorme número de atletas e, também, aqueles esportes especializados praticados por um grupo menor de pessoas. Para exemplificar, citamos, por um lado, o futebol, o vôlei, o tênis, o basquete, o handebol, o xadrez, o ciclismo, a natação, as artes marciais; e de outro lado, vemos o automobilismo, a esgrima, o tiro esportivo, o tiro com arco, a escalada.
Ponto comum em cada uma das modalidades é que sempre haverá um grau de risco envolvido. Estes riscos decorrem de um grau maior ou menor de contato entre os atletas ou da execução e manuseio das atividades e equipamentos inerentes ou de riscos mentais tal como no xadrez
No presente estudo o interesse é analisar a legislação de regência especificamente sobre a possibilidade ou não de atletas infanto-juvenis praticarem o tiro esportivo.
Durante a vigência do decreto normativo Decreto 5.123 de 2004, restava bem claro que todo e qualquer desportista poderia, à vista do que determina o citado art. 217 da Constituição Federal de 1988, praticar o tiro esportivo, desde que tivesse capacidade e aptidão para tanto, mediante autorização judicial específica que seria concedida quando presentes os requisitos autorizadores. Veja-se a norma do art. 30 do referido decreto:
Art. 30. As agremiações esportivas e as empresas de instrução de tiro, os colecionadores, atiradores e caçadores serão registrados no Comando do Exército, ao qual caberá estabelecer normas e verificar o cumprimento das condições de segurança dos depósitos das armas de fogo, munições e equipamentos de recarga.
§ 1o As armas pertencentes às entidades mencionadas no caput e seus integrantes terão autorização para porte de trânsito (guia de tráfego) a ser expedida pelo Comando do Exército.
§ 2o A prática de tiro desportivo por menores de dezoito anos deverá ser autorizada judicialmente e deve restringir-se aos locais autorizados pelo Comando do Exército, utilizando arma da agremiação ou do responsável quando por este acompanhado.
Ocorre que o decreto em questão foi expressamente revogado pelo Decreto 9.846/2019, que atualmente estabelece a seguinte regra:
Art. 7º A prática de tiro desportivo, nas modalidades aceitas pelas entidades nacionais de administração do tiro, por pessoas com idade entre quatorze e dezoito anos:
I – será previamente autorizada conjuntamente por seus responsáveis legais, ou por apenas um deles, na falta do outro;
II – se restringirá tão somente aos locais autorizados pelo Comando do Exército; e
III – poderá ser feita com a utilização de arma de fogo da agremiação ou do responsável legal, quando o menor estiver por este acompanhado.
Parágrafo único. A prática de tiro desportivo por maiores de dezoito anos e menores de vinte e cinco anos de idade poderá ser feita com a utilização de arma de fogo de propriedade de agremiação ou de arma de fogo registrada e cedida por outro desportista.
Perceba-se que o destacado art. 7º apenas liberou os maiores de 14 anos da exigência de alvará judicial, restando mantida a necessidade de alvará judicial para menores de 14 anos praticarem o tiro esportivo estabelecida no decreto 5.123 de 2004.
Veja que a outra interpretação possível é a de que esses menores nem mesmo precisariam de qualquer permissão pois pelo princípio da legalidade ao administrado é autorizado tudo aqui que a lei EXPRESSAMENTE não proíbe.
E essa proibição JAMAIS poderia nascer de uma interpretação que não fosse literal.
Ademais uma interpretação restritiva ao direito dos menores de 14 anos de praticar qualquer esporte, incluindo o tiro esportivo, possuindo capacidade fisiopsíquica, violaria a regra constitucional de direito ao desporto.
Corrobora esse entendimento o disposto no art. 149 do Estatuto da Criança e do Adolescente que impõe que autorização judicial deverá ser concedida aos menores cujos pais queiram que participem de eventos, inclusive em clubes, desde que presentes os requisitos que autorizem tal pedido.
Por fim, do ponto de vista legal, temos de lembrar que NÃO HÁ na lei de regência da qual emanam os decretos, qualquer proibição legal para que menores de 14 anos pratiquem o esporte do tiro, não podendo um decreto, norma hierarquicamente inferior, criar tal restrição.
Além do mais, limitar o início da prática do esporte aos quatorze anos poderá prejudicar o desenvolvimento de um talento para as modalidades do tiro esportivo, considerando que nos países em que há forte tradição no esporte os atletas começam a praticar com idades que chegam a 8 anos.
Como o Brasil poderá ser competitivo no tiro esportivo se os jovens ficarem impedidos de praticar o esporte desde a tenra idade?
A respeito destas dificuldades de formação de novos atletas já se manifestou o ex-presidente da Confederação Brasileira de Tiro Esportivo, Durval Balen:
– Em vez de falar armas, deveríamos falar em equipamento, que é o mais correto. Em outros países, se começa na mais tenra idade. Aqui, é 18 anos a idade mínima para um atleta poder desempenhar sua atividade de tiro, e para adquirir a arma é com 25 anos. Isso é idade para estar no pódio de competições internacionais. Existem atletas com idade inferior que praticam o tiro esportivo, mas com liminares na justiça, algo muito demorado – explicou Durval Barlen, ex-presidente da CBTE.
O especialista em segurança, Bene Barbosa, também critica as regras que limitam a prática do tiro esportivo, que não se confunde com mero uso recreativo de armas de fogo, por se tratar de esporte de alto rendimento, conforme destaque da reportagem abaixo:
Especialista no assunto e ferrenho crítico do estatuto do desarmamento, Bene Barbosa, presidente do Movimento Viva Brasil e autor do livro “Mentiram para mim sobre o desarmamento” afirma que o atual cenário desmotiva o surgimento de novos atletas no país, algo que não acontece em outros esportes. Para ele, em tese, o atleta de tiro até tem uma legislação diferente, já que ele responde a uma portaria específica do Exército. No entanto, essa mesma legislação acompanha o que vale para os civis – o estatuto do desarmamento – e cria uma série de dificuldades não só para quem já pratica mas para o surgimento de atiradores esportivos.
Convém ressaltar que o tiro esportivo não é atividade meramente recreativa, segundo informa o próprio Exército Brasileiro, através da Portaria Colog 150/2019, que impõe e exige diversas regras de segurança e atividades para que o atirador desportivo possa manter e renovar sua licença par fins de competição:
Art. 11. Para fins de fiscalização de PCE, O TIRO DESPORTIVO ENQUADRA-SE COMO ESPORTE DE PRÁTICA FORMAL E DESPORTO DE RENDIMENTO, nos termos da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998 e do art. 51 do Decreto nº 10.030/2019.
Art. 12. Atirador desportivo é a pessoa física registrada no Comando do Exército e QUE PRATICA HABITUALMENTE O TIRO COMO ESPORTE, conforme o inciso I do art. 52 do Decreto nº 10.030/2019.
§1º Habitualidade é a prática frequente do tiro desportivo realizada em local autorizado, em treinamentos ou em competições, conforme o inciso II do art. 52 do Decreto nº 10.030/2019. 3/19
§2º Considera-se prática frequente de tiro desportivo a participação do atirador em, no mínimo, oito atividades de treinamento ou de competição em entidade de tiro, em eventos distintos, dentro de um período de doze meses.
Art. 13. A habitualidade deve ser comprovada pela entidade de prática e/ou de administração de tiro de vinculação do atirador desportivo e ser fundamentada nas informações dos registros de habitualidade, conforme o anexo A.
§1° Registros de habitualidade são anotações permanentes das entidades de prática ou de administração de tiro que comprovam a presença do atirador desportivo no estande de tiro para treinamento ou competição oficial.
§2° Devem constar nessas anotações a data, o nome e o registro do atirador, o evento ou a atividade, a arma (tipo e calibre), o consumo de munição (quantidade e calibre) e a assinatura do atirador desportivo.
§3° Os registros de habitualidade devem estar disponíveis, acessíveis e facilmente identificáveis, a qualquer momento, quando solicitados pela fiscalização de produtos controlados.
§4º A comprovação da habitualidade do atirador desportivo será exigida para a emissão de guia de tráfego.
Assim, é de se compreender que ao cidadão é permitido fazer tudo que não estiver proibido pela lei, nos termos da melhor doutrina:
“Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza” (MIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 30. Ed. São Paulo: Malheiros, 2005)
Não se vê uma proibição no atual decreto, mas mera alteração da regra de exigência de alvará judicial para atletas maiores de 14 anos. Deste modo, o juízo convocado a examinar o pedido de alvará judicial para que um atleta com menos de 14 anos poderá examinar se estão presentes os requisitos autorizadores para a prática do desporto, dentre eles a capacidade fisiopsíquica atestados por estudo social ou por exame psicotécnico realizado por profissional credenciado e autorizado na realização de tal avaliação, bem como se presentes os requisitos de segurança e incolumidade física e psíquica do infante e que devem ser exercidos, não pelo poder público, mas sim pelos detentores do poder familiar.
O risco do esporte é rigorosamente mitigado com a adoção de técnicas seguras de manuseio e uso dos equipamentos da modalidade, garantindo a incolumidade dos seus praticantes.
E tal risco, por si só, não pode ser utilizado como apanágio para vedar o acesso ao esporte, considerando a primazia do direito constitucional ao desporto, e considerando também a existência, como já destacado, de técnicas e procedimentos que afastam ou neutralizam o risco existente.
Há mais chances de um atleta de esportes de contato, sejam eles da luta, dos esportes coletivos com bola, se machucarem do que na prática do tiro esportivo, consideradas as regras de segurança para o exercício deste esporte.
E a título comparativo, noutras modalidades com grau de risco igual ou até maior que as vislumbradas para o tiro esportivo, como no caso do automobilismo, da esgrima, do tiro com arco, da escalada, do ciclismo radical, vê-se que as crianças e jovens interessados praticam tais modalidades sem qualquer interferência do Poder Público, desde que observadas as regras de segurança que inibem ao máximo os acidentes. Por que com o tiro esportivo é diferente?
A sociedade brasileira criou um preconceito em torno deste esporte que necessita ser repensado, considerando que a sua prática é segura, quando observados os critérios legais e regulamentos necessários, e por esta razão não se justifica realizar uma interpretação restritiva ao direito de acesso ao desporto apenas por se tratar do Tiro Esportivo.
Não se quer aqui, sob qualquer forma ou pretexto, incentivar o acesso indiscriminado de jovens aos equipamentos esportivos do tiro, mas apenas se propõe uma reflexão séria e desvestida de qualquer preconceito acerca do direito ao desporto, garantido pela Constituição e que deve ser integralmente exercido, sempre observando-se as regras de segurança e de uso e gozo deste direito, e também as do melhor interesse da criança e do adolescente, respeitando-se a organização do núcleo familiar e a vocação dos interessados para o esporte que melhor atenda os seus interesses pessoais.
As opiniões expressas no artigo acima são de inteira responsabilidade de seus autores e não, necessariamente, exprimem a opinião da Revista Pedana.